Com o avanço da vacinação contra a Covid-19 e a retomada gradual das atividades, já é possível identificar o retorno de uma pequena parcela dos passageiros que deixaram temporariamente o transporte coletivo. Porém, a esta altura, é seguro afirmar que a demanda pelo serviço não será recuperada integralmente e que a oscilação verificada nesses últimos 18 meses foi primordialmente decorrente das medidas para enfrentamento da pandemia, especialmente a restrição da circulação, e da redução das atividades econômicas. Naturalmente, essa relação parece bastante lógica e não causa espanto algum mesmo a quem não tem tanta familiaridade com o setor e não saiba que, por exemplo, na Região Metropolitana do Recife, 72% dos deslocamentos para trabalho e 55% para estudo são feitos por ônibus.
É importante lembrar que há quase uma década o transporte público já vinha consistentemente perdendo passageiros e que o eventual – embora improvável – retorno ao cenário pré-pandêmico sequer deveria ser celebrado. O momento é propício para uma reflexão sobre a oportunidade que temos para redesenhar os nossos sistemas de transporte e as nossas cidades, e sobre como podemos torná-los resilientes e à prova do futuro, isto é, sustentáveis, inclusivos e coesos. Para isso, é fundamental entender as variáveis que influenciam a escolha pela utilização do modal.
Nesse sentido, a Urbana-PE encomendou a um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco um estudo sobre os fatores que interferem no comportamento da demanda por ônibus na Região Metropolitana do Recife. Foram analisados dados demográficos, socioeconômicos, sobre o transporte público e sobre a evolução do uso e a ocupação do solo de 2007 a 2018, logo, desconsiderando a atual crise sanitária.
Utilizando-se de modelos matemáticos, os pesquisadores determinaram se os fatores geravam influência positiva ou negativa e qual o nível de intensidade dessa repercussão sobre a demanda. O estudo apontou que, para cada aumento do tempo médio de viagem de 1%, a demanda se reduz em 0,43%. Isso corrobora a percepção dos operadores e de pesquisas que apontam a regularidade do sistema e o tempo dos deslocamentos como alguns dos principais problemas identificados pelos nossos clientes. Sobretudo, reforça a necessidade de priorizar o transporte coletivo na malha viária.
No Recife, a implantação de faixas exclusivas chegou a aumentar a velocidade média dos ônibus em até 118%, reduzindo a viagem em um único corredor em até 22 minutos. É um tempo significativo que os nossos clientes podem dedicar ao estudo, às famílias e ao lazer. Em outro ponto da cidade, sem gozar da prioridade viária, os ônibus chegaram a trafegar a menos de 5 km/h no horário de pico. Como atrair ou mesmo manter clientes nessa condição?
Os modelos desenvolvidos indicaram também que a redução de 10% da renda da população reduz a demanda por transporte coletivo em 2,11%. Talvez ainda seja muito cedo para aferir o real impacto da pandemia na economia, uma vez que ainda contamos com os necessários auxílios e medidas de apoio às empresas. Certo é que a conjuntura atual não parece caminhar para um cenário de ganhos reais para a população. Tampouco podemos declarar finda a pandemia, ou mesmo preconizar um desfecho próximo.
O estudo também identificou uma forte relação entre o valor da tarifa e o uso do transporte por ônibus. Um aumento de 10% no preço da passagem reduz a demanda entre 3,89 e 5,95%. A necessidade de um novo modelo de financiamento tornou-se premente e temos exaustivamente discutido as alternativas, mas raras são as medidas concretas adotadas no sentido de emancipar a sustentação do sistema da arrecadação tarifária. Enquanto repetimos o mantra de que o transporte individual motorizado deve financiar o transporte público, dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que a frota de automóveis e motos continua a crescer, tendo aumentado 331% entre os anos de 2001 e 2020 no país.
Sabemos que continuar incentivando o transporte individual motorizado implica aprofundar ainda mais as desigualdades nas nossas cidades. Não enfrentar os problemas estruturais dos nossos sistemas de mobilidade e persistir nos mesmos erros é simplesmente inaceitável. De acordo com a ONU, até 2050 dois terços da população mundial viverá nos centros urbanos e, consequentemente, dependeremos cada vez mais de sistemas de transporte público de alta capacidade, acessíveis e atrativos.
Os pesquisadores responsáveis pelo trabalho concluíram que, por mais que existam problemas sistêmicos que afetam os passageiros e extrapolam a capacidade de intervenção do poder público municipal e estadual, como desemprego e redução de renda, a solução dos problemas mais relevantes depende de ações e políticas públicas de âmbito local. Naturalmente, a curto prazo o foco será na sobrevivência e recuperação da saúde financeira das empresas e sistemas de transporte. Todavia, devemos ter clareza de onde desejamos chegar e ter em mente que os próximos passos serão determinantes para definirmos os nossos caminhos.
As soluções para estruturação de sistemas de transporte público sustentáveis e de alta qualidade existem, são conhecidas e a grande maioria já está em prática nos sistemas de referência mundo afora. Ainda temos a chance de adotá-las e até de nos tornarmos referência para outras cidades e sistemas. No entanto, precisamos entender os fatores que nos farão vencer a inércia e promover as transformações necessárias.
E que ao sairmos lentamente dessa pandemia não sigamos conformados com os nossos velhos e conhecidos problemas e que estes não se cristalizem e não se tornem monumentos para contemplação da nossa incapacidade coletiva de endereçar nossos esforços às questões urgentes que acometem as nossas cidades.
Luiz Fernando Bandeira de Mello
Presidente da Urbana-PE
Artigo publicado originalmente na revista NTUrbano